Emilia Ferreiro
Não há uma relação direta entre uma análise da emissão sonora que precederia a escrita e a própria escrita, mas sim uma relação de ida e volta, para a qual o termo “dialética” é o que melhor convém. Um nível mínimo de reflexão sobre a língua é exigido pela escrita, que, por sua vez, proporciona um “modelo” de análise que exige refinamentos sobre a reflexão inicial, e assim por diante.
Desde o início de meus trabalhos de pesquisa, reconheci a importância da reflexão sobre a oralidade para compreender o sistema alfabético de escrita. Desde o primeiro livro publicado (1979) até o último (2002), tratei regularmente desse tema, como também o fiz em vários artigos. Vejamos apenas três exemplos de textos disponíveis em português.
No final de Psicogênese da língua escrita (Ferreiro e Teberosky, 1984), quando comparamos a evolução da escrita na história da humanidade e na história indivi-dual, pode-se ler o seguinte:
“Para alcançar uma escrita (...) não bastaria possuir uma linguagem; seria preciso, além disso, certo grau de reflexão sobre a linguagem, o qual permita tomar consciência de algumas de suas propriedades fundamentais. Os fonemas existiram desde que existe a linguagem humana (...). Entretanto, o descobrimento da ‘unidade lingüística fonema’ é um fato recente” (p. 280 da edição de 1984; p. 294-295 da edição de 1999).
No Capítulo 2 do livro Com todas as letras (Ferreiro, 1993), trato extensamente do problema dos pré-requisitos do ponto de vista prático e teórico e, em particular, da “consciência fonológica”, apresentada como um requisito para a aprendizagem da leitura (p. 68-70). No livro publicado em 2002, traduzido recentemente e intitulado Relações de (in)dependência entre oralidade e escrita (Ferreiro, 2003), trato do mesmo tema com mais profundidade teórica e mais amplamente.
Em termos muito resumidos, sustento que a compreensão do sistema de escrita exige um primeiro nível de reflexão sobre a língua, porque a língua foi aprendida em contextos de comunicação, mas, para compreender a escrita, é preciso considerá-la como um objeto em si e descobrir algumas de suas propriedades específicas, que não são evidentes nos atos de comunicação. Grande parte dessa reflexão tem a ver com as possibilidades de segmentação da fala, ou seja, com a descoberta de que aquilo que dizemos é passível de ser analisado em partes e que essas partes podem ser comparadas entre si, ordenadas e reordenadas, classificadas como semelhantes ou diferentes. Essa reflexão envolve diversos níveis de análise: alguns consistem em segmentações que preservam o significado (grupos nominais ou verbais, palavras inteiras) e outros consistem em segmentações nas quais o significado desaparece (sílabas, fonemas).
A escrita socialmente constituída privilegia algumas dessas unidades: as palavras (que aparecem segmentadas no escrito) e as letras, como unidades constitutivas dessas palavras. Porém, nem todas as palavras gráficas correspondem à “noção de palavra” de uma criança de 4 ou 5 anos. Nem todas as letras correspondem a fonemas, segundo a definição dos lingüistas, e muito menos a unidades isoláveis na emissão (os foneticistas sustentaram até a exaustão, mas parece que ainda é preciso repetir que apenas as vogais e alguns fonemas consonantais são isoláveis no nível da emissão: podemos prolongar um som como /s/ ou /f/, mas não podemos nem prolongar nem pronunciar isoladamente um som como /p/, /k/ e muito menos grupos consonantais como tal).
É cada vez mais claro para mim que a relação entre níveis de segmentação da fala e da escrita constitui uma relação dialética e não-linear. Ou seja, em interação com a escrita, os dois níveis de análise cruciais (a análise em palavras gráficas e a análise das palavras em segmentos não-significativos) tornam-se relevantes. É para compreender a escrita tal como a praticamos que é preciso descobrir que o que a escrita chama de “palavras” não se refere unicamente a segmentos isoláveis na emissão, porque os artigos, as preposições e as conjunções devem entrar na definição de “palavra”, embora por si sós não tenham significado autônomo. É para compreender a escrita tal como existe na sociedade que é preciso descobrir que as segmentações das palavras vão “bem além” da sílaba – unidade natural – e devem situar-se em um nível abstrato (porque muitas vezes impronunciável) de diferenciações dificilmente audíveis e poucas vezes visíveis no nível da articulação.
Em resumo, o que estou dizendo agora corrobora o que já publiquei: não há uma relação direta entre uma análise da emissão sonora que precederia a escrita e a própria escrita, mas sim uma relação de ida e volta, para a qual o termo “dialética” é o que melhor convém. Um nível mínimo de reflexão sobre a língua é exigido pela escrita, que, por sua vez, proporciona um “modelo” de análise que exige refinamentos sobre a reflexão inicial, e assim por diante.
Em contraposição ao que acabo de dizer, a quase totalidade da pesquisa em phonological awareness busca modelos lineares, tenta encontrar uma causa única e dirige a ação pedagógica nesse mesmo sentido. Essa pesquisa ocupa-se unicamente da leitura (leitura de listas de palavras ou de pseudopalavras). Não se ocupa do texto nem da produção de textos. Ignora a escrita (a menos que se trate de cópia, não de uma verdadeira escrita). Trabalha unicamente no nível do sistema de escrita concebido como um código.1 Mas vamos por partes.
Por que nos ocupar unicamente da leitura?
A tradição anglo-saxônica separa aquilo que a tradição latina unifica. Nos países de tradição latina, estamos acostumados a falar de leitura e escrita como dois aspectos intimamente relacionados de um mesmo processo de aprendizagem. Não se pode considerar alfabetizado quem apenas consegue ler as mensagens produzidas por outros, não sendo capaz de produzir por si mesmo mensagens significativas. Ao menos nesse campo, a tradição latina é muito melhor que a anglo-saxônica, e não vejo nenhuma razão para abandoná-la.
O que acontece se introduzimos a escrita,
em sua dimensão evolutiva, nesta discussão?
Para quem só confia em artigos publicados em inglês e com tratamento estatístico, há evidências a oferecer. Junto com Sofía Vernon, publiquei na Harvard Educational Review (1999) um artigo que analisa as relações entre os níveis de conceituação da escrita e as possibilida¬des de segmentação oral. Neutralizamos a va¬riá¬vel idade cronológica, tomando crianças mais ou menos com a mesma idade (5 anos), mas que se encon¬tra¬vam em níveis diferentes de conceituação da escrita. Naturalmente, procuramos um número igual de crianças de cada nível para poder fazer as análises estatísticas correspondentes. As tarefas de segmentação oral eram de dois tipos: uma, diante de desenhos; outra, diante de tarjetas com escrita. Em vez de qualificar as respostas em termos de certas ou erradas, classificamos todas as respostas obtidas. Os resultados indicam claramente que as respostas são mais analíticas quanto mais evoluído é o nível de conceituação da escrita e que, em igual nível de conceituação, as respostas mais avançadas são obtidas quando a segmenta¬ção oral realiza-se diante de um estímulo escrito. Kamii e Manning (2002) reproduziram esses resultados com crianças de língua inglesa e obtiveram resultados similares.
Por outro lado, Margarida Alves (2002, 2003) comprovou experimentalmente que crianças portuguesas de nível pré-silábico ou de nível silábico sem valor sonoro, após sessões individuais de produção de escritas e posterior contraste com outras escritas do nível imediatamente superior, avançam em tarefas de consciência fonológica exatamente da mesma maneira que outro grupo experimental treinado em provas fonológicas.
Em resumo, quando introduzimos a escrita no debate, os termos do debate também mudam.
O que ocorre com as avaliações internacionais?
O Programme for International Student Assesment (PISA) foi lançado em 2000, com uma avaliação em 32 países, baseada em uma prova de competências administradas ao final do que agora se considera como “educação básica”, ou seja, a alunos de 15 anos. Esse programa avalia a cada três anos competências em leitura, matemática e ciên¬cias, com ênfase alternada em uma dessas áreas, nessa ordem (www.pisa.oecd.org). Na apresentação dos resultados, explicita-se a relação destas com variáveis macro¬e¬co¬nô¬mi¬cas, como o PIB per capita.2 Nunca se fala de métodos de ensino. As provas de leitura enfatizam a possibilidade de coordenar informações de tipos diversos, fazer inferências, comparar textos sobre um mesmo assunto, etc. A tradução dos itens para cada língua pode ser matéria de discussão, assim como a pretensa “neutralidade” deles. No entanto, de modo geral, a idéia sobre as competências em leitura necessárias para circular no mundo contemporâneo que subjaz à elaboração das provas não é totalmente errônea e merece ser examinada seriamente. Ao contrário, tratar os resultados do PISA como referentes à instrução inicial em leitura é totalmente incorreto. Também não tem sentido comparar tais resultados independentemente de outras variáveis relevantes: horas de permanência na escola nos diferentes países comparados, idade de início da escolaridade, formação dos professores, equipamento das escolas, nível de alfabetização da população adulta, etc.
Naturalmente, aqueles que pretendem provocar um impacto na opinião pública podem ocultar o que está disponível na página web citada anteriormente, como podem também ignorar as declarações feitas na Finlândia (país líder nessas avaliações) por Jouni Ensio Valijarvi (publicadas no jornal Clarín, de Buenos Aires, em 28 de setembro 2003), que, indagado sobre por que a Finlândia aparece em primeiro lugar nas avaliações PISA, responde: “As razões são muitas, porém a mais importante reside nos professores do ensino fundamental e em sua capacitação. Na Finlândia, a profissão docente é muito valo¬ri¬zada. São muitos os postu¬lantes, podemos escolher os melhores, selecionamos apenas 10%. (Nas pesquisas) os professores de nível fundamental encontram-se sempre no mesmo nível de prestígio que os professores universitários, os médicos e os advogados”. Quando será que poderemos dizer algo assim em nossos países da América Latina?
Não quero sugerir que os países devam menosprezar os resultados dessas avaliações internacionais. Contudo, não se pode tratar os resultados como se fosse uma competição esportiva. É preciso contextualizá-los. Em primeiro lugar, cada país deve ser avaliado em relação a si mesmo para poder avançar. Recordo que, há quase 25 anos, quando comecei a influir no pensamento brasileiro, considerava-se “normal” que 50% dos alunos repetissem a primeira série. Conseguir que isso deixasse de ser visto como “normal”, que o fracasso escolar fosse considerado também responsabilidade da instituição escolar, foi parte de minha luta. Era a época das famílias silábicas e das cartilhas com “vovô viu a uva” e outras combinações sem sentido, devidamente ridicularizadas pelos lingüistas brasileiros. Será que vamos fazer retroagir a discussão aos mesmos termos, porém agora com propostas como “A mola da mala da Malu mela na lama”, que aparecem em um certo Método Metafônico lançado recentemente? Será que vamos continuar ignorando as correlações positivas entre ter ouvido ler em voz alta desde muito pequeno e prognóstico escolar, que nem mesmo os mais fervorosos defensores do método fônico podem negar?
Não ignoro as inúmeras evidências no sentido de que a consciência fonológica é um ingrediente importante no processo de alfabetização. O que repudio é a redução da língua escrita a um código de correspondências (com múltiplas e variadas exceções). O que repudio é a equação consciência fonológica = método fônico, porque despreza a criança, que só pode ser “treinada” e é impossibilitada de descobrir por si mesma. O que repudio é a dicotomia método fônico/método global, porque as boas professoras que conheço não se situam em nenhum desses dois pólos. O que repudio é a ignorância dos esforços infantis para compreender a escrita mediante seus esforços para produzir escrita. Tenho consciên¬cia de todos os desafios que os países da América Latina devem superar para obter sua independência econômica, política e cultural. A alfabetização é apenas um deles -- e não é o menor. Mas já conhecemos as crianças decodificadoras, incapazes de compreender o que decodificam. Vamos aceitar que, quanto mais pobres e distantes da língua escrita, mais elas devam ser submetidas a exercícios de consciência fonológica e menos ao contato com a língua escrita? Atenção: uma coisa é a consciência das propriedades fonológicas das diversas variantes de fala, e outra coisa é o treinamento em um “dialeto-padrão” erigido no “português correto”. A discussão acadêmica, no caso do Brasil, logo adquire conotações políticas. Disso já sei. E por isso digo: quando falamos de awareness, será que falamos de um conhecimento implícito do falante que é preciso elevar ao nível consciente, ou estamos falando dos fonemas de um suposto “português-padrão” que se supõe representado na escrita? O terreno é delicado, e é preciso que os defensores do retorno aos métodos fônicos sejam claros a esse respeito. Porque o estabelecimento de um vínculo tão estreito entre pronúncia (fala) e escrita é pleno de conseqüências (políticas, ideológicas e pedagógicas).
Notas
1 Nesse sentido, é muito útil a leitura do artigo A escrita, irredutível a um “código” (apud Ferreiro, 2003), de Claire Blanche-Benveniste, uma lingüista francesa bastante reconhecida.
2 “Os países com maior renda nacional ou Produto Interno Bruto (PIB) costumam ter melhor desempenho que os países com uma renda nacional mais baixa (...). Sem constituir necessariamente uma relação causal, 43% da variação entre as pontuações médias dos países pode ser prognosticada a partir de seu PIB per capita” (Resumen Ejecutivo –www.pisa.oecd.org).
Referências Bibliográficas
FERREIRO, E. Com todas as letras. São Paulo: Cortez Editora, 1993.
FERREIRO, E.; TEBEROSKY, A. Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre: Artmed, 1984.
FERREIRO, E. et al. (Org.) Relações de (in)dependência entre oralidade e escrita. Porto Alegre: Artmed, 2003. Original em espanhol: Barcelona: Gedisa, 2002.
KAMII, C.; MANNING, M. Phonemic awareness and beginning reading and writing. Journal of Research in Childhood Education, v. 17, n. 1, p. 38-46, 2002.
SILVA, C.; ALVES, M. Phonological skills and writing of presyllabic children. Reading Research Quarterly, v. 37, n. 4, p. 466-483, 2002.
___. Relations between children’s invented spelling and the development of phonological awareness. Educational Psycholo¬gy, v. 23, n. 1, p. 3-16, 2003.
VERNON, S.; FERREIRO, E. Writing development: a neglected variable in the consideration of phonological awareness. Harvard Educational Review, v. 69, n. 4, p. 395-415, 1999.
Emilia Ferreiro é pesquisadora do Centro de Investigação e Estudos Avançados do Instituto Politécnico Nacional (Cinvestav) do México.
E-mail: ferreiro@mail.cinvestav.mx
3 comentários:
Show de bola!!! Marcuschi é mestre também em falar da linguagem oral. Beijos...
Rosemir
xere um suvaco de bode
comi manga de tão bosta
Postar um comentário